Planeta Sustentável

quarta-feira, 15 de abril de 2009

Excerto: O pássaro Pintado de Jerzy Kosinski

O pássaro pintado

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JERZY KOSINSKI



Fiquei assustado por me ver totalmente sozinho. Recordei, porém, as duas coisas que, segundo a Olga, eram necessárias para sobreviver sem ajuda humana. A primeira era o conhecimento das plantas e dos animais, estar familiarizado
com venenos e ervas medicinais. A outra era a posse do fogo, ou de um “cometa” nosso. A primeira era mais difícil de obter – exigia uma dose considerável de experiência. A segunda consistia apenas num quarto de lata de conserva, aberta numa das extremidades e com uma série de pequenos furos dos lados. Uma laçada de noventa centímetros de arame era enganchada no topo da lata, para servir de pega, de modo a permitir que a balançassemos como um laço ou como um turíbulo de igreja.

Um fogão pequeno e portátil deste género servia como uma constante fonte de calor e uma cozinha em miniatura. Podia ser alimentado com qualquer tipo de combustível disponível, preservando sempre algum lume no fundo. Ao balouçar
a lata energicamente, o ar era bombeado através dos furos, tal como o ferreiro faz com o seu fole, enquanto a força centrífuga mantém o combustível no lugar. Uma escolha sensata de combustível e um movimento oscilante apropriado permitia
que se obtivesse o calor adequado para vários objectivos, enquanto a alimentação constante do “cometa” evitava que este se apagasse. Por exemplo, a cozedura de batatas, nabos ou de peixe requeria um lume lento à base de turfa e folhas húmidas,
enquanto que para assar um pássaro acabado de apanhar era aconselhável o lume vivo obtido com ramos secos e palha. Ovos de ave acabados de retirar dos ninhos deviam ser cozinhados num lume feito com ramas de batata.

De modo a manter o lume aceso ao longo da noite, o cometa tinha de estar muito bem envolvido em musgo húmido, colhido nas bases de árvores altas. O musgo, ao arder, emitia um brilho difuso, criando um fumo que repelia cobras e insectos.
Em caso de perigo, o lume podia tornar-se rubro-branco com alguns balanços. Em dias húmidos e de neve, o cometa tinha de ser reabastecido com frequência com madeira resinosa seca ou pedaços de tronco e requeria imensa oscilação. Em dias
ventosos ou de calor seco, o cometa não exigia muita oscilação e a combustão podia ser abrandada adicionando erva fresca ou com algumas gotas de água.

O cometa era igualmente uma forma de protecção indispensável contra cães e pessoas. Até mesmo os cães mais ferozes estacavam quando viam um objecto a balouçar violentamente e a lançar faúlhas que ameaçavam pegar-lhes fogo ao pêlo. Nem sequer o homem mais corajoso queria arriscar perder a vista ou queimar o rosto. Um homem armado com um cometa carregado tornava-se uma fortaleza e podia ser atacado em segurança apenas com uma vara comprida ou atirando-lhe pedras.

É por esse motivo que a extinção de um cometa era uma questão de extremagravidade. Podia acontecer por descuido, se a pessoa adormecesse ou devido a uma chuvada repentina. Os fósforos eram muito raros naquela região. Eram dispendiosos e difíceis de obter. Quem possuía fósforos adquirira o hábito de dividir
cada fósforo ao meio como forma de poupança.

Deste modo, o fogo era preservado muito escrupulosamente em fogões de cozinha ou nas fornalhas. Antes de se deitarem, à noite, as mulheres acumulavam as cinzas de modo a que as brasas se mantivessem incandescentes até de manhã. Ao
amanhecer, benziam-se com reverência antes de reatarem o fogo. O fogo, diziam, não é um amigo natural do homem. É por isso que é necessário fazer-lhe as vontades. Também se acreditava que partilhar o fogo, especialmente pedi-lo emprestado, só podia resultar em desgraça. Afinal, aqueles que pedem fogo emprestado na terra podem ter de devolvê-lo no inferno. E levar o fogo para fora de casa podia fazer com que as vacas ficassem secas ou estéreis. Além disso, um lume que se extinguisse poderia despoletar consequências desastrosas em casos de parto.

Tal como o fogo era indispensável ao cometa, o cometa era indispensável à vida. Era necessário um cometa para nos aproximarmos de colónias humanas, que eram sempre guardadas por matilhas de cães selvagens. E, no Inverno, um cometa extinto podia levar a queimaduras por causa da geada, assim como à falta de alimentos cozinhados.

As pessoas traziam sempre pequenos sacos às costas ou presos aos cintos para apanhar combustível para os cometas. Durante o dia, os camponeses que trabalhavam nos campos coziam legumes, pássaros e peixe neles. De noite, os homens e os
rapazes que regressavam a casa balouçavam-nos com toda a força e deixavam-nos voar pelos ares, ardendo vivamente, como discos vermelhos a planar a grande altitude. Os cometas descreviam um amplo arco e as suas caudas traçavam a sua
trajectória. Foi assim que receberam o seu nome. Pareciam realmente cometas a cruzar os céus, com as suas caudas flamejantes, cujo aparecimento, como me explicara
a Olga, significava guerra, peste e morte.

Era muito complicado encontrar uma lata para fazer um cometa. Só se podiam encontrar ao longo dos distantes caminhos-de-ferro onde se efectuavam os transportes
militares. Os camponeses locais impediam que os forasteiros as recolhessem, exigindo um preço elevado pelas latas que eles próprios tinham encontrado. As comunidades de cada lado da linha lutavam pelas latas. Todos os dias, enviavam equipas de homens e rapazes equipados com sacos para recolherem todas as latas que encontrassem e armados com machados, para afastar quaisquer rivais.


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Este é um excerto do capítulo 3 de "O pássaro pintado" de Jerzy Kosinski

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